Em 2021, em um dos picos da pandemia de Covid-19 no Brasil, Ednildes de Souza, de 37 anos, estava desempregada e com uma filha de cinco anos para criar sozinha, sem rede de apoio. Quando ficou sabendo que uma empresa iria implantar um projeto social de geração de renda para mulheres na região em que mora, o distrito de Caboto, em Candeias, decidiu se inscrever. Não sabia do que se tratava, o que precisaria fazer e que renda seria essa, mas foi.
“As meninas disseram que ia ter uma cooperativa de mulheres aqui. Aí, eu falei: ‘É, vou participar!’. Eu sempre gosto de participar de várias atividades que acontecem aqui na comunidade, né? As meninas me chamaram e eu pensei: ‘Eu vou lá ver o que é que vai rolar. Se der para eu ficar, eu fico, se não der, eu saio’”, relembra.
Chegando lá, Ednildes encontrou outras 19 mulheres tão interessadas quanto ela e que, acima de tudo, precisavam muito de uma renda. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as populações dos estados do Norte e do Nordeste foram as que mais empobreceram durante a pandemia, e a Bahia tomou a frente: em 2020, também de acordo com o IBGE, o estado, que tem a economia baseada nos setores de comércio e serviços, era o que tinha o maior número de desempregados no Brasil. À época, eram mais de 1 milhão e 300 mil pessoas sem emprego, o que corresponde a 19,8% da população baiana. Em 2019, essa taxa era de 17,2%.
A empresa que estava montando a tal “cooperativa de mulheres” era a MDC Energia, que desenvolveu o projeto em parceria com a ERB Brasil, que opera na região de Candeias, Instituto Phi e o Instituto Aliança, instituição especializada em colocar projetos sociais em prática. Nessa primeira reunião, o objetivo era juntar as interessadas e descobrir: que atividades esse grupo de mulheres quer e pode fazer para ter renda? Algumas semanas mais tarde, depois de muita conversa e pesquisa, começou a nascer o Delícias de Caboto, pequena empresa especializada em sequilhos, geleias e licores artesanais.
“Nós fizemos um diagnóstico dos locais em que atuamos. Uma das regiões em que nós temos operação é em Candeias, próximo às comunidades de Madeira e Caboto. E ali, em Caboto, entendemos que funcionaria um projeto de geração de renda. Formamos, então, esse grupo produtivo de mulheres de diversas origens vulneráveis, na pandemia, que passaram a se enxergar como um grupo que, no fim das contas, vai se tornar uma pequena empresa” explica Leonardo Bacelar, gerente de gente e gestão e comunicação da MDC, que também apoia outras quatro iniciativas sociais na Bahia e no Ceará.
Para reunir as participantes, a empresa abriu inscrições e espalhou a notícia pela cidade. Grupo formado, chegou a hora de decidir o que ele finalmente faria, mas sem imposições: tudo foi decidido de forma coletiva. “A gente chamou as mulheres de Caboto e conversou com elas sobre as possibilidades de geração de renda na região. Uma das propostas, por exemplo, era o artesanato, fazer bolsas. A gente conversou, fez uma votação e a escolha delas foi trabalhar com sequilhos, licores e geleias. Depois, veio o nome, ‘Delícias de Caboto’, que também foi escolhido por elas”, completa Leonardo.
Ednildes, que antes de perder o emprego formal atuava como copeira, foi uma das que votou para trabalhar com comida. Mas, para participar do grupo, tinha uma condição, que foi a mesma que a impediu de encontrar um novo trabalho depois de perder o anterior: ela só conseguiria ir aos encontros se pudesse levar a filha, Ayla, que hoje está com sete anos.
“Eu não tinha trabalho porque não tinha ninguém para tomar conta dela. Aí, perguntei se eu poderia levar a minha filha nas reuniões do grupo, e falaram que podia. Por isso que consegui participar. A minha filha está comigo desde o começo do projeto, desde sempre. Ela vai comigo e diz que é a dona do Delícias de Caboto. Aí, às vezes, ela fala: ‘Eu sei fazer as bolinhas [os sequilhos], vocês não me deixam fazer!’. A gente não deixa, mas ela gosta de participar”, conta ela.
O começo
Ana Rosa da Silva, do Instituto Aliança, é coordenadora do projeto e acompanhou a criação do grupo desde o comecinho, lá em agosto de 2021. Quando chegou em Caboto e leu as fichas de inscrição das interessadas, levou um susto: quando perguntadas sobre quais seriam seus principais sonhos, a maioria das inscritas respondeu que elas estavam em busca de direitos básicos, como emprego e dignidade. Mas, e os sonhos?
“A gente tem a proposta de fazer uma assessoria decolonial, que vem de dentro para fora, não é imposta. Por isso, a gente tem que ter um processo muito cuidadoso, de escuta, para que seja respeitado o tempo de cada pessoa, o tempo que ela tem disponível para aquela ideia. Nós somos mulheres, e nós temos tripla, quádrupla jornada de trabalho. Mas, a partir da execução do projeto, elas foram sonhando, foram almejando mais. A capacidade de sonhar é o que move todas elas. Quem não sonha, não se move”, conta Ana Rosa.
Mas, para conseguir começar a enxergar esse possível novo futuro, o caminho é longo. Antes de colocar a empresa para funcionar, as mulheres de Caboto passaram por diversos treinamentos: além de aulas de culinária, quando aprenderam a fazer os produtos que comercializariam, elas também tiveram que estudar contabilidade, administração, e marketing, entre outros.
Quase dois anos depois, a parte mais burocrática de contabilidade continua sendo um dos principais desafios das participantes, que ainda estão sendo assessoradas por equipes da MDC e das instituições parceiras. Até mesmo a fase de detalhar o valor nutricional dos alimentos, etapa obrigatória e regulamentada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foi acompanhada pelas participantes, que estavam na linha de frente, com a mão na massa.
Lilian Ferreira, de 44 anos, que, assim como Ednildes, está no grupo desde o começo, ainda lembra muito bem desse momento em que elas foram mais alunas do que empresárias. “A gente foi tomando gosto, descobrindo coisas que a gente nem imaginava, que a gente nem sabia como funcionava, como lacrar as embalagens e usar o código de barras, por exemplo. Engarrafava, colocava a validade, observava a qualidade do produto. Tudo isso foi ensinado. A gente foi entrando nesse mundo e começou a sonhar com isso. E aí, a gente foi já se achando empreendedora formada, né?”, brinca.
O chef de cozinha Marcos Soares, responsável por criar e apresentar as receitas para as mulheres, conta que aquelas primeiras aulas foram essenciais, já que elas ainda não tinham experiência com esse trabalho e ainda não sabiam muito bem por onde começar: “Cheguei com uma proposta já formada por mim e fui passando as experiências para elas. Elas ficaram encantadas, porque viram que dava certo, e apostaram. Fui com as receitas prontas, mas fomos elaborando, fortalecendo o processo”. Hoje, as mulheres de Caboto já conseguem desenvolver receitas próprias, tanto de geleia, quanto de sequilho e licor, e as novas opções já devem entrar no catálogo neste mês de junho, antes do São João.
No começo do projeto, quando as escolas ainda estavam fechadas por causa da pandemia, parte dos cursos aconteceram na cozinha da Escola Municipal Thyeres Novaes Cerqueira Lima, em Caboto. Depois, quando as aulas voltaram e as mulheres já não tinham onde preparar as receitas, elas alugaram uma casa com o apoio das empresas financiadoras do projeto. “A gente estava realmente decidida, empolgada. Só queria continuar”, relembra Lilian.
Obstáculos
Porém, a empolgação nem sempre é combustível suficiente: Ednildes, por exemplo, pensou em desistir várias vezes, mas as colegas a seguraram. E ela não foi a única: aquele grupo que começou com 20 inscritas, hoje tem cinco participantes fixas e seis associadas, que chegaram depois e trabalham como vendedoras. “Já pensei várias vezes em desistir, sabe? Mas, é sempre Lilian, Nádia, as meninas me incentivando a ficar. É difícil você ter uma criança pequena, cuidar da casa e trabalhar. Ela não estuda mais aqui na comunidade, estuda em outro colégio. Tenho que levar para a escola e retorno com ela à tarde. Aí, eu vou para a produção. Se tiver muito pedido, a gente vai até 21h, 22h, e trabalha sábado e domingo também”, conta.
De 2021 até aqui, a MDC já investiu cerca de R$ 300 mil no Delícias de Caboto, em custos que vão desde a contratação da equipe dos institutos parceiros até o pagamento de cursos, professores, aluguel de espaço, materiais, documentos e equipamentos. E, de acordo com Leonardo Bacelar, para que a marca consiga começar a se manter sozinha, sem o apoio das empresas que a patrocinem, esse valor deve crescer até o final deste ano. É que, no momento, como pontua Leonardo, além do Delícias de Caboto ainda ter um faturamento variável, que muda de acordo com a demanda do consumidor, ele ainda é baixo: no total, dá cerca de R$ 5 mil por mês, dinheiro que é dividido entre elas.
“Estamos chegando agora em uma receita média de R$ 5 mil a R$ 6 mil por mês. Para dividir pela quantidade de mulheres, ainda é bem incipiente. É um esforço muito grande para uma receita, de uma certa forma, limitada. O objetivo agora é chegar em pelo menos R$ 15 mil por mês, para que cada uma delas ganhe uma quantia razoável”, detalha Leonardo.
Lilian, que hoje faz questão de participar de todos os processos de produtivos da marca, da produção até a venda, acredita que o que motivou muitas delas a sair do negócio foi a mesma coisa que as fez entrar: a pouca renda. E, quando a gente fala em abrir uma pequena empresa do zero, com pessoas que ainda precisariam passar por diversos cursos de capacitação, a renda, realmente, é a última etapa.
“Quando a gente começou a ter essa visão de que poderia dar certo, o número de mulheres já tinha reduzido bastante. Porque não foi algo que veio com um lucro imediato, né? A gente trabalha bastante, tem uma carga horária, mas a gente não tem esse retorno financeiro ainda. Então, muitas desistiram por conta disso. Outras acharam um trabalho de carteira assinada, por exemplo, não conseguiram conciliar e preferiram sair. E algumas não acreditaram no projeto, o que é normal”.
Lilian, aliás, também recebeu uma proposta de emprego formal, com carteira assinada e tudo, mas decidiu não aceitar: depois de quase dois anos ligada ao Delícias de Caboto, se viu determinada a fazer dar certo. Antes do projeto, ela trabalhava na área administrativa de uma empresa, mas, na pandemia, perdeu o posto.
“Eu passei em uma entrevista de emprego e não fui. Não fui porque eu acreditava. Eu falei: ‘Não, eu não vou desistir agora’. Se eu aceitasse essa oportunidade de emprego, iria trabalhar de segunda a sexta em horário administrativo. Eu não iria ter tempo, e teria que abandonar o projeto. Até hoje eu ouço críticas por isso. Eu sonho com isso, eu acredito que vai dar certo. Então, não vou desistir agora. Já são quase dois anos, e eu estou sempre dando essa injeção de ânimo nas meninas. A gente não pode desistir, né? A gente tem que continuar, porque a gente está vendo que as coisas estão acontecendo”.
Força feminina
E quando Lilian fala que “as coisas estão acontecendo”, ela está mirando em fatos concretos: em novembro do ano passado, o projeto ganhou uma loja própria no centro de Caboto. Além disso, restaurantes e pequenos mercados da região já estão comercializando os produtos, e a marca ganhou um espaço na loja do Cesol (Centros Públicos de Economia Solidária), uma iniciativa do governo do estado, no Salvador Shopping. Vez ou outra, elas também vendem os produtos na sede da ERB Brasil, em Candeias, e mantém as redes sociais ativas para receber encomendas e alcançar mais clientes.
Adriele Vieira, de 24 anos, é a mais nova do grupo, e também está no projeto desde o início. Quando começou, ela já estava na faculdade de contabilidade, o que fez toda a diferença quando chegou a hora de organizar as finanças da empresa. “O curso me ajudou e tem me ajudado muito. Com a minha formação, ajudo o Delícias de Caboto no desenvolvimento contábil e fiscal. Sou a contadora do Delícias de Caboto. O grupo tem uma importância sentimental para mim também, agrega na minha vocação na contabilidade”, comenta ela, que concilia esse trabalho com um emprego fixo de assistente financeira em uma empresa da região.
Além de atuar na área fiscal do grupo, Adriele também é a responsável por alimentar as redes sociais da marca, como Instagram e Facebook. Ela, que é alagoana e mora em Caboto desde 2012, já consegue medir os primeiros impactos que a empresa vem causando na comunidade. “O projeto tem ajudado as mulheres que tem garra a se destacarem no empreendedorismo feminino, causando também o benefício de nos tornar independentes financeiramente, que foi o propósito inicial”.
Para fazer com que o negócio cresça e atinja aquela meta de pelo menos R$ 15 mil de receita por mês, o objetivo agora, segundo Leonardo, é correr atrás de novos contratos e firmar parcerias entre as mulheres e grandes empresas fornecedoras de alimentos da região.
“A nossa estratégia comercial hoje é conseguir contratos para que elas produzam para alguém para garantir a receita. Por exemplo: produzir sobremesas para restaurantes que servem as empresas do Polo Petroquímico de Candeias. A gente está tentando associá-las a essas empresas que têm refeitórios, porque aí você garante um contrato e uma renda fixa e resolve esse problema, não depende mais daquele esforço diário de vender e não saber se vai conseguir pagar as suas contas”, diz o gerente de gente e gestão e comunicação da MDC.
Hoje, com o fim da crise global provocada pela pandemia de Covid-19, a população da Bahia figura entre as mais pobres do Brasil. Segundo um levantamento do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), feito com base em informações de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, mais da metade dos baianos, 51,6%, vive em situação de pobreza, ou seja, com uma renda mensal de até R$ 665,02.
E é por isso que, como relata Lilian, não dá para desistir do Delícias de Caboto. É com alegria que ela fala da conquista de ter atraído mais mulheres para participar do projeto, como vendedoras ou revendedoras associadas:
“Um dos nossos propósitos também é impactar a nossa comunidade, gerar renda para outras famílias e para outras mulheres. Mostrar que elas não precisam sair de Caboto para trabalhar, que possam aqui mesmo ter essa oportunidade de gerar a sua renda, arcar com as suas despesas. A gente sabe, né, como é difícil. Se a gente puder dar essa oportunidade às mulheres daqui da comunidade, é mais um objetivo cumprido. A gente é um grupo de mulheres, guerreiras, lutadoras, sonhadoras. Desde o início, a gente sempre teve esse foco, a gente sabia onde queria chegar”.
Antes de concluir, Lilian, que não é de Caboto, mas mora na comunidade há anos, garante que não planeja arredar o pé de lá tão cedo, e ressalta: além delas, há outros comércios, praia e belezas – muitas belezas. Caboto, que fica às margens da Baía de Todos-os-Santos, em frente à Ilha de Maré, ainda não está entre os destinos mais procurados pelos turistas que vêm para a Bahia, mas, para Lilian, é questão de tempo. Afinal, sem Caboto, não teria o Delícias de Caboto: “É difícil ver alguém chegar aqui e não se apaixonar. É um lugar incrível, maravilhoso, tranquilo. Tem outros comércios maravilhosos. É pequenininho, mas aconchegante, acolhedor”.
Uma espécie de metáfora e simetria perfeitas que este lugar traça com as mulheres que viram, neste projeto de vida, a doce materialização de um sonho por reconhecimento, segurança e oportunidade.
Onde encontrar as Delícias de Caboto:
Loja Delícias de Caboto – Rua dos Missionários, 67, Centro, Caboto, Candeias
Restaurante São Roque – Rua dos Missionários, Caboto, Candeias
Loja do Cesol no Salvador Shopping – Avenida Tancredo Neves, 3133, Loja 4006, Piso G2, Caminho das Árvores, Salvador
Contatos para encomendas:
Instagram: @delicias.de.caboto
WhatsApp: (71) 9 9938-3787
E-mail: deliciasdecaboto@gmail.com